27/03/2010

No quintal dos silêncios










Sempre me acordam os passarinhos com a cantoria desmedida que preparam pra receber a manhã. Mas hoje o canto espaçado e tristonho, num quase silêncio,  anunciava que alguma coisa havia acontecido.

A primeira vista da janela foi estarrecedora. O quintal onde a chuva tanto desfilou por esses dias, fazendo brotar uma variedade impressionante de verde, estava aberto à flor da terra. Como se nunca tivesse  recebido a visita de um mato sequer. Pude entender pelo comentário de um pássaro no telhado,  que a enxada, sorrateiramente, passou a madrugada fazendo a devassa.

Não tendo como escapar à fúria da enxada, o amontoado indefeso jazia num canto do quintal.  Já ressecando aos primeiros fachos do sol.
O cenário silencioso era velado por xuxus dependurados nos quatro cantos do muro. Também uma ameixeira próxima ao amontoado, desconsolada, sentia muito o acontecido.


(SM)
Tela: No quintal dos silêncios de Martha Barros

24/03/2010

Emoção















O recado era: _ entrega pra minha mãe e diz que é muito importante!
Atrasada, a madrinha jogou na bolsa a folha pautada dobrada em três partes e chegando no trabalho, entregou a encomenda no seu destino: _ela disse que é muito importante viu?

A mãe curiosa, desdobrou a primeira, a segunda e na terceira desdobra esboçou um sorriso. Achou linda a cartinha desenhada de bolinhas do começo ao fim da folha. Umas maiores outras menores, mas todas em linha reta.

Ficou muito orgulhosa com a coordenação da filhinha de apenas dois anos.  Isso ela comentou por todo o dia com as freguesas e mostrando a cartinha, emendava: _Até escorreu uma lágrima de emoção!

Do lado de fora, também a chuva por todo o dia escorreu de emoção pela janela.


(SM)

19/03/2010

Esse Tempo!


Pela conversa dos relâmpagos eu poderia apostar que a chuva e a ventania trocariam de guarda com a tarde.
Mas neste dia, com a concordância do tempo, a tarde, de surpresa, tirou do bolso esquerdo uma barra de céu azul royal sob um amontoado de nuvens fofas. E do bolso direito, tirou um céu fog gotejante em tons de crepúsculo. E isso chamou a atenção da pessoa mais ocupada à mais desatenta. Flashs foram vistos por todos os cantos.
Não bastasse, o tempo ainda foi visto carregando o manto da noite. Dizem também que foi ele que trouxe pra ela uma exuberante lua de unha fina, com rabiola de estrelas que pipoqueavam aqui e acolá.


(SM)

14/03/2010

Pequeno Herói












Tenho um pequeno vizinho, que nas tardes de sábado, brinca com a irmãzinha bem debaixo da minha janela. A brincadeira chamaria menos minha atenção não fosse por uma curiosidade: saber o nome do herói gritalhão que  inspirou o menino.

Ele berra pra irmãzinha: _ yahhhhhhhhhhhhhhh!!! que silenciosa, é rendida de todas as formas. Típica cobaia de irmãozinho mais velho.  Mas se entendem por olhares em meio a uma luta em câmera lenta que tem de braços e pernadas pro alto a rolamentos pelo chão de cimento.

Tarde dessas, no auge da barulheira lá embaixo, não me contive. Cá de cima, também em alto e bom tom,  interferi na brincadeira:
_ yahhhhhhhhhhhhhhh!!!!

Depois de uma longa pausa, o menino bradou: _Apareça covarde!!
(...)
Agora que havia sido descoberta, não sabia se aparecia para o herói desconhecido, que a essa altura já estava irritado:
_Apareça seu verme! Covarde!! Apareça!!!

De verdade, não tive coragem de me render. No entanto, do alto do meu esconderijo, retrucou por mim a curiosidade que já não se aguentava:  _Quem é você??!?!



(SM)
desenho do herói: por Kynni Duarte

12/03/2010

A árvore e a erva


















Hoje ela acordou com o zunido da foice, arrancando à força de seus braços, a erva florida. As duas viviam grudadas desde quando, já haviam perdido a conta. O que se sabe é que a semente dessa amizade deixada no recôncavo de seu tronco, por um passarinho amarelo, brotou devagarzinho. Daquelas que o tempo vai firmando. Delicadamente, revelou flores brancas que deixavam a árvore toda envaidecida de enfeitada. Até confundia os passantes voadores mais distraídos.

Passaram a viver intimamente abraçadas, numa cumplicidade sem comparação. Se ficaram juntas o tempo suficiente de flores, porque agora havia a foice de separá-las? E foi em meio a esse desentendimento que a árvore viu a erva desfalecida sendo arrastada e arremessada no quintal do abandono, ao lado.

Não demorou muito e no palco desfile da foice, brotavam minhocas, formigas, tatus bolinha e toda raça de bichos miúdos. Uns para consolar a árvore, outros, de curiosos para assistir ao seu desamparo.


(SM)

11/03/2010

Esquecidos

















ele mora na subida de um morro de pedras. a roupa ferrugem e a boca cerrada por cadeado e correntes revelam que é esquecido de abertura. sua única companhia, um matagal esquecido de cultivo. vivem os dois, esquecidos de olhares.


(SM)
foto: Velho Portão/Olhares.com
de Manuel Joaquim Bastos Marques

07/03/2010

Manhã acompanhada de Chuva














Era bem cedo quando decidi que esperaria pela manhã da janela.  Não demorou muito a chegar, linda, encoberta por uma névoa fina. Pensei, como diz o ditato: cerração baixa, sol que racha.  Porque ontem ela não fez fita, já veio acompanhada de muita chuva. E juntas, manhã e chuva passaram o dia.  Encharcadas viraram a noite.

Pois hoje, ela quase convenceu o sol a acompanhá-la. Mas ele veio só até o pé do morro. Isso eu vi. Então, contrariando o ditado, a manhã não teve outra alternativa senão descerrar algumas nuvens escuras que já estavam no seu rasto. Não demorou muito e já estavam de novo, manhã e chuva, soltas pelo dia, desaguando na paisagem.


(SM)
Tela: Manhã de chuva a ouvir o Coltrane (de João Silva)
www.jokerartgallery.com/fotos/pin/silva/silva.php

04/03/2010

Arauto













manhã se abrindo.  pequeninas borboletas brancas percorrem o quintal de ponta a ponta. saltitantes. parecem dizer aos quatro cantos que o sol está ameaçando voltar. que é pra abrir as janelas, recolher os agasalhos, pendurar os guarda-chuvas. desabotoar o coração. que ele está voltando.


(SM)
foto de Bruno Diniz: Olhares.com