28/02/2010

Era uma vez um passarinho


Todo dia ele acorda muito cedo. Sem fazer ruído, deixa a árvore nos braços de Morfeu e segue rumo à casa de tijolinhos - a que tem um caminho todo cercado por pinheiros muito altos, uma porteira e uma piscina.

Se aproxima sorrateiro. Não bate o sino da porteira, que é pra não acordar as moradoras. Antes de entrar, olha pra trás, pra ter certeza de que está mesmo só. 

E, finalmente diante do quadrado azul, prepara um rasante na água orvalhada. Cruza a piscina num único deslizar, molhando só o peito miúdo. E de rasante em rasante na água fresca, nem percebe que a manhã lentamente abre as cortinas do dia e os outros passarinhos já estão chegando em bando.

Mas antes mesmo que o bando cruze a porteira, ele se afasta  para a  árvore mais próxima, se sacode rapidamente e vai embora. Deixa-os pra trás na maior farra, espirrando água pra todos os lados e fazendo cantoria para as moradoras, os cachorros e os vizinhos das moradoras.

Ah, esse é o Tião.


(SM)
Tela de Martha Barros - Era uma vez um passarinho

21/02/2010

Abandono


















era uma mulher sem boca
carregava lágrimas em dois baldes
o nome dela: solidão
e solidão vivia de abandono


(SM)
Tela de Martha Barros: Mulher sem boca

20/02/2010









Um pássaro só, com certeza se juntará a seu bando assim que se despedir do sol.  Uma pessoa só, digo, sem um bando pra se juntar quando o sol se despede, deve ser um pouco menos feliz que um pássaro.


(SM)
tela: Martha Barros/desprezo

18/02/2010

Manhã com pingos de ave











abro a janela  na horinha em que o pombo pousa bem pertinho da pomba, em cima do telhado do vizinho. a pomba arredia, voa para o muro mais próximo. ele vai atrás. ela volta para o telhado. ele insiste, vai atrás mais uma vez. agora ela voa pra bem longe, pra cima da casa mais alta da rua de cima. o pombo fica parado, pensativo.

três passarinhos se alternam entre o mesmo telhado, o mesmo muro e um pé de milho seco - numa coreografia que se repete, entre o telhado, o muro e o pé de milho.

o beija-flor filhote, da antena de tv voa para o varal ainda despido e deste para o muro com cacos-de-vidros-verde! e some no milharal ressecado.

o bentivi animado pousa bem próximo dos passarinhos dançarinos, que interrompem a coreografia e debandam.

nas árvores, miúdos gorjeios já reclamam pelo café. o pombo continua pensativo em cima do telhado. e um ventinho preguiçoso passa pelo milharal muito seco, pelo varal desnudo e sobe pra beijar meu rosto. um bom dia de manhã que acorda com muito orvalho nos olhos.


(SM)
tela: de Matha Barros: manhã com pingos de ave

14/02/2010

A rua do morro alto














A rua que sobe o morro alto chega  lá em cima com a língua pra fora. Na subida tem muitas janelas e tem pencas de meninos pendurados nelas.

Nesta rua alegria de menino dura um dia inteiro. É bom cair no poço, roubar bandeira, passar anel e namorar! porque menino namora (e às vezes sofre, porque não sabe o que fazer com o que sente).

Na rua do morro alto despenca muita gente no domingo. Tem missa das oito e das dez. A melhor roupa, o melhor calçado, o melhor sorriso desce a ladeira na manhã ensolarada.

Enquanto o domingo não passa, as pessoas descem e sobem, até o sol cruzar o morro alto da rua  que tem pencas de meninos, que despenca gente.



(SM)

11/02/2010

Simples


hoje ela quase não sai mais. anda devagarinho, arrastando os chinelos casa afora. mas todos os dias com vestido azul de bolinhas brancas, tem encontro marcado com o sol, na cadeira branca da varanda. ele brinca de reluzir os fios da cabeça branca. ela silenciosa: talvez esteja pensando se cabe chuva nesta manhã azul e branca.

(SM)
capa do livro: Uma Velhinha de Óculos, Chinelos e Vestido Azul de Bolinhas Brancas

10/02/2010

Lua na praça
















As pessoas passam,
os carros passeiam,
os cães
deitam e rolam
na grama,
as crianças brincam
na praça.

As crianças brincam
de nave espacial
na copa da árvore,
lá de cima
a praça é diferente.

As mulheres conversam
sentadas na calçada,
e a lua cheia
clareia a praça.



(SM)

08/02/2010

Surpresa














hoje decobri onde os passarinhos filhotes passam as manhãs enquanto os seus papais voam atrás do sustento da família. descobri porque passei em frente ao jardim de infância dos passarinhos. fica na esquina de uma avenida cumprida onde tem um lote vago. onde o capim gordura reina absoluto. e foi na horinha do recreio. de repente eles surgiram e eram muitos. brincando de saltar de um galho a outro do capim verde. se alternavam no galho fragil que vertia quase ao chão. o mato era trampolim em meio à cantoria ensurdecedora. lindo de ver.

(SM)

04/02/2010

Veludinho














o lodo é um sujeito muito escorregadio. e estranho também. o tipo de visita que só espera chover pra aparecer. chega de repente com a família toda. invadem o pedaço. e nem se importam com acomodações. qualquer cantinho pra eles está bom: pode ser um canto de beco, um pé de muro, até no meio da calçada se ajeitam. muito bonitinhos, em roupas de veludinho verde. mas tem uns que são um perigo, há que se atentar - eles se juntam em bando em algumas dessas calçadas de ladeira. se passar distraído é rasteira na certa.


(SM)
foto: Renato/Olhares.com